quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O bioma pampa em risco? A plantação de pínus e eucaliptos

Entrevista à Revista do Instituto Humanitas UNISINOS, no. 247, 10/12/2007

IHU On-Line - Sendo o senhor proprietário de terras no pampa gaúcho, qual é a sua avaliação da região?
Eduardo Lanna -
O pampa tem vários aspectos de interesse. Sob o ponto de vista histórico-cultural, ali estão as origens do arquétipo do gaúcho. Toda tradição gaúcha, cultuada por tantos CTGs espalhados pelo Brasil e pelo mundo, vem do pampa: os grandes espaços, a lida com o gado, o cavalo, companheiro nessa jornada. Sob o ponto de vista paisagístico, trata-se de uma das mais belas paisagens do mundo, que emociona a todos que têm o privilégio de conhecê-la. A BR 293, que corta o pampa no sentido Leste-Oeste, de Pelotas a Quaraí, apresenta aos seus viajantes um cenário do qual nunca irão esquecer. Sob o ponto de vista ambiental, além de ser o único bioma brasileiro que se manifesta em um só estado, o Rio Grande do Sul, são poucas as regiões no mundo que apresentam esta enorme diversidade de espécies campestres. Em termos florísticos, são cerca de 450 espécies de gramíneas forrageiras e mais de 150 espécies de leguminosas, sem contar as compostas e outras que totalizam cerca de 3000 espécies, ensinam professores do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A fauna é composta por grande número de pássaros e animais de pequeno porte, peixes, anfíbios, répteis, mamíferos etc. Sob o ponto de vista econômico, existe uma enorme oportunidade representada pela produção de carne de gado bovino, em campos naturais com grande diversidade, sem necessidade de suplementação alimentar, o que lhe confere um sabor especial, sem igual. É a melhor carne do mundo, que o mercado sofisticado dos países mais desenvolvidos deseja consumir e pagar por isto. Bem manejado, e com melhorias no campo nativo representadas pela correção de acidez, adubação e plantio de espécies hibernais, pode-se atingir produções de 1000 kg por ano de carne de qualidade extraordinária em cada hectare, de acordo com pesquisas realizadas pelo Departamento de Plantas Forrageiras e Agrometeorologia da UFRGS. Com a carne valendo atualmente mais de R$ 2,20 o quilo, isto representa mais de R$ 2.200,00 de receita bruta por hectare em cada ano, bem mais do que em qualquer outra atividade nesse bioma, incluindo a agricultura e a silvicultura.

IHU On-Line – O pampa comporta a demanda das culturas de pínus e eucalipto?
Eduardo Lanna -
Se ele comporta o pínus e o eucalipto a resposta mais evidente é: para quê? Para que transformar este ambiente único que temos ainda o privilégio de conhecer em um “deserto verde” de plantações de árvores que não são naturais na região? Para que comprometer a diversidade biológica, alterar a belíssima paisagem, transformar radicalmente o ambiente de formação do gaúcho por uma atividade cuja rentabilidade não alcança a do campo bem manejado, e cuja continuidade se resume a algumas poucas décadas? O que será das áreas florestadas daqui a 20 anos, quando o pínus e o eucalipto de rebrote não mais serão economicamente viáveis, e quando toda a diversidade biológica atual estiver extinta? Como promover a recomposição desses campos? E a que custos? Que explicações os que defendem a silvicultura na região darão para seus netos?

IHU On-Line - Como o senhor percebe a utilização de grandes potenciais hídricos utilizados para a irrigação de eucaliptos? A água de qualidade encontrada no pampa gaúcho deveria ser utilizada para outro fim?
Eduardo Lanna -
Não consta que o eucalipto será irrigado na região, mas, sem dúvida, é um grande consumidor de água, comparado ao campo nativo que vai ser eliminado. Essa região apresenta, em boa parte do ano, balanço hídrico deficitário. Ao se introduzir uma espécie conhecida por seu grande consumo de água, expressivamente maior do que o consumo do campo nativo, a tendência é o agravamento das condições de suprimento aos usuários atuais de água, como a orizicultura e o abastecimento das cidades. A água do pampa já está quase que totalmente comprometida com os atuais usuários, e a situação deles certamente será agravada, tanto mais quanto maior for a área destinada à silvicultura. E ocorre aí um ciclo perverso: a escassez de água regional - ao contrário de impedir o ingresso de atividades que a usam de forma intensa, como o plantio de eucalipto, ou controlar a irrigação perdulária de arroz - levará à decisão de se construir reservatórios de regularização (barragens). Essas barragens inundam mais campos nativos e ensejam o incremento das áreas irrigadas de arroz, que invadem Áreas de Proteção Permanente, ou seja, as várzeas ribeirinhas aos rios e arroios da região, reduzindo outras áreas com expressivo valor ambiental. Tudo isto contribui para grandes alterações do pampa, que trazem o risco de descaracterizá-lo.

IHU On-Line - O eucalipto é uma planta que demanda muita necessidade de água. Pensando em possíveis períodos de escassez hídrica no pampa, a introdução dessas monoculturas afetará o manancial hídrico da região? De que maneira?
Eduardo Lanna -
Certamente haverá alterações. Existem estudos em vários países que constataram isto. Mesmo no Brasil, existiram áreas úmidas que foram secadas com emprego de eucalipto – aliás, comenta-se ser um bom uso para essa espécie: secar áreas úmidas. O problema é que são poucas as pesquisas na região e por isto os impactos que serão causados não foram ainda avaliados. Desta forma, um bioma pouco conhecido como o pampa está em risco de ser altamente alterado antes que sejam avaliadas as conseqüências nefastas para a sociedade atual e para as gerações futuras.

IHU On-Line - As empresas de celulose, apropriando-se de áreas próximas ao Aqüífero Guarani podem colocar em risco esse reservatório de água doce?
Eduardo Lanna -
Deve ser reconhecido que o aqüífero Guarani é um gigantesco reservatório subterrâneo de água doce e que há uma desproporção entre o grande uso de água que será consumida pelo eucalipto e essas gigantescas reservas existentes. Ocorre, porém, que, ao contrário do que existe no imaginário das pessoas, esse grande reservatório não é algo contínuo. Existem inúmeros compartimentos não comunicáveis entre si, que foram criados pelos movimentos tectônicos. Desta forma, pode ser considerada a hipótese de que áreas expressivas com eucaliptos se localizem sobre compartimentos isolados do aqüífero Guarani que serão afetados. Isto é particularmente mais grave devido ao fato de que as áreas de recarga do aqüífero são, via de regra, áreas com solo arenoso que apresentam poucas alternativas de uso além da pecuária e silvicultura e, por isto, tem menor valor de mercado. São essas as áreas preferidas pela silvicultura, já que o pecuarista ainda não se deu conta do potencial de uso do campo nativo e, por isto, o mercado não valorizou como deveria as áreas destinadas à pecuária. Desta forma, embora não existam estudos a respeito, não são descartáveis as possibilidades de haver o risco que a pergunta menciona.

IHU On-Line - Com a implantação da monocultura de pínus e eucalipto no pampa gaúcho, poderá se decretar o fim da atividade pecuarista na região?
Eduardo Lanna -
Depende muito como ocorrerá. Não acredito que o pampa todo seja ocupado por eucalipto e pínus. Desta forma, sempre sobrará alguma área para a pecuária. No entanto, insisto: não é aceitável que áreas de expressivo valor histórico, cultural e ambiental, e grande potencial econômico, sejam alteradas para dar lugar a atividades que economicamente não são tão rentáveis quanto uma pecuária moderna, que aproveite as enormes vantagens comparativas do pampa, para produzir a carne que o mundo deseja consumir.

IHU On-Line - Podem surgir problemas e conseqüências socioeconômicas e ambientais com o aumento da plantação de eucaliptos?
Eduardo Lanna -
A esse propósito, cabe comentar que existe um estudo muito abrangente realizado pela Fepam, pela Fundação Zoobotânica e pelo Departamento de Florestas e Áreas Protegidas do estado do Rio Grande do Sul, com apoio de especialistas de várias universidades, que definiu 45 Unidades de Paisagem Natural – UPN e indicou, por meio de uma matriz de vulnerabilidade, 12 UPN com baixo grau de restrição à silvicultura, 15 com médio grau e 18 com alto grau de restrição. Ele foi chamado de “Zoneamento Ambiental para Atividade de Silvicultura no Rio Grande do Sul – ZAS”. Por que o estado, que elaborou este estudo com alto nível de qualidade, não o adota como referência para licenciamento? Não estou aqui me colocando em uma posição extrema contra o eucalipto. Acho que nas 12 UPNs com baixo grau de restrição não haveria maiores problemas para o seu plantio, desde que adotadas as precauções mínimas que o ZAS determina. O mesmo poderia ocorrer nas 15 UPNs com médio grau de restrição, em que as precauções serão maiores. Por que insistir em ocupar parte das 18 UPNs com alto grau de restrição? Por que não considerar este estudo, elaborado pelo próprio estado, como base para o licenciamento? A razão é que por alguma razão ele não agradou às empresas de celulose e às de silvicultura. Por que razão? Certamente por questões econômicas. Muitas se anteciparam e adquiriram vastas extensões de terra baratas no pampa com a perspectiva de implantação de florestas de eucalipto. Correram um risco, pois na época não havia o ZAS, e não querem perder com suas apostas. Estão comprometendo ambientes de expressivo valor ambiental e cultural, e com grande potencial econômico, reafirmo, apenas levando em consideração o aumento de seus lucros imediatos. Para amenizar declaram, como recentemente, que usam apenas metade das áreas que adquiriram: se essas estão nas 12 UPNs com baixas restrições, possivelmente estaria tudo bem. Mas se estiverem – e muitas estão – nas 18 UPN com alta restrição à silvicultura, deixar metade sem eucalipto é muito pouco.

IHU On-Line - Em que consiste o trabalho da Apropampa? Essa atividade pode ser uma alternativa a silvicultura?
Eduardo Lanna -
A Apropampa é uma associação cultural, social e de pesquisa, sem fins lucrativos, formada por produtores rurais, indústria frigorífica, varejo e outros agentes ligados à cadeia da bovinocultura de corte de forma direta ou indireta, e que tem como o seu principal objetivo a preservação e proteção da indicação geográfica da carne, couro e seus derivados, da região “Pampa Gaúcho da Campanha Meridional”. Entre outros objetivos, existe o de ofertar produtos da pecuária bovina de corte com garantia de origem e qualidade – a certificação de origem - ao consumidor. Por meio da implementação de processos de qualidade, agregar valor aos agentes envolvidos na cadeia produtiva da pecuária bovina de corte. De grande relevância, a Apropampa pretende desenvolver ações que promovam a organização e preservação do pampa gaúcho da Campanha Meridional, promovendo estudos e agindo junto às autoridades competentes para o atendimento deste objetivo, além de estimular e promover o potencial turístico da região, bem como o aprimoramento sociocultural dos associados, seus familiares e comunidade. Maiores informações podem ser obtidas na página www.carnedopampa.com.br.

Em outras palavras: a Apropampa visa à promoção do desenvolvimento sustentável do pampa, na região por ela demarcada, por meio da atividade que melhor concilia o crescimento econômico com a proteção ambiental que é a bovinocultura de corte.

Como comentei antes, a pecuária de corte nessa região produz a melhor carne do mundo e, havendo um bom manejo, pode chegar a produzir 1000 kg de carne por hectare, em cada ano. Nem a silvicultura ou a agricultura de arroz ou soja, milho etc. podem ser tão rentáveis nessa região. E, o que é também importante, é possível conciliar a pecuária de corte com a proteção ambiental do pampa, mantendo e ampliando os serviços ambientais que presta. Já nos outros casos, isso não ocorre, muito pelo contrário.

IHU On-Line - Sendo o pampa gaúcho um dos ecossistemas mais importantes do estado, ele corre o risco de sofrer degradações ambientais irreversíveis devido ao excesso de eucaliptos?
Eduardo Lanna -
Sem dúvida. Após 20 anos de silvicultura, resta um solo que não mais produz eucalipto com valor comercial, com os tocos e raízes profundas que sobraram. Quem vai retirar isto e a que custo? Quanto tempo levará até que o solo se reconstitua? E o campo nativo, quando será recuperado? Poucos se preocupam com isto, aparentemente. E isto, mais uma vez, poderia ser evitado simplesmente fazendo com que o governo do Estado, e as empresas de celulose e de silvicultura, aceitem o “Zoneamento Ambiental para Atividade de Silvicultura no Rio Grande do Sul” – ZAS, elaborado pelo governo passado como diretriz para o licenciamento da silvicultura. Como já comentei antes, esse estudo permite o plantio de eucalipto em grandes extensões representadas pelas 12 UPN com baixas restrições ambientais ou, mesmo, nas 15UPNs com médias restrições. Não acatar o ZAS é desmerecer o trabalho de um grande contingente de técnicos do Estado, altamente preparados, que elaboraram o estudo por encomenda do governo passado. É pensar o futuro com uma visão imediatista, esquecendo as futuras gerações. É possível conciliar a proteção do pampa com a silvicultura: bastaria aceitar o que recomenda o ZAS. O governo atual, caso não mude as suas políticas nessa matéria, terá que carregar a acusação de grande negligência ambiental. As empresas de celulose e de silvicultura podem ser acusadas de insensibilidade ambiental e irresponsabilidade social, por conta de expectativas de lucros excessivos.

IHU On-Line - Problemas com o plantio de eucalipto ocorrem apenas no Rio Grande do Sul ou se estendem até o Uruguai e Argentina? Como o senhor percebe as políticas públicas desenvolvidas nestes dois países?
Eduardo Lanna -
Tenho poucos detalhes sobre as políticas que nossos irmãos do Prata adotam nesse sentido, mas me parece não serem muito diferentes daquelas que estão sendo adotadas no Rio Grande do Sul. A “Guerra das Papeleiras”, que está colocando a Argentina e o Uruguai em acirradas discussões, mostra que os problemas vão além das fronteiras brasileiras. É todo o pampa, que se entende a estes países, que se encontra ameaçado. Infelizmente, as grandes organizações da cadeia de celulose descobriram essa região excepcional, que, além de grande produtividade na cultura de eucalipto, tem a favor delas o relativamente baixo custo das terras, devido à pecuária pouco tecnificada nelas praticada. No entanto, a qualidade da carne que aqui se produz é conhecida mundialmente. Falar de carne argentina ou uruguaia é atestar essa qualidade. E a carne que produzimos no pampa gaúcho em geral, e a carne que produzimos na Apropampa, em especial, em nada difere da carne dos nossos vizinhos. Talvez devêssemos nos unir nesse esforço de valorizar a carne produzida nesses campos, divulgando as técnicas de manejo que permitem alcançar rentabilidades superiores à da silvicultura, como forma de controlar o avanço da degradação desses campos. A UFRGS já faz isto, ao promover anualmente um simpósio de forrageiras e produção animal voltado para a sustentabilidade produtiva do bioma pampa. Essas informações precisam ser compartilhadas e assimiladas por todos: os pecuaristas de todos os países e os seus governantes. As futuras gerações certamente nos cobrarão pela omissão.

Obra sobre as papeleiras e o eucalipto no Pampa será lançada amanhã, na Feira do Livro de Pelotas

Fonte: Ecoagência Solidária
"Eucalipitais – Qual Rio Grande do Sul que desejamos?” é uma coletânea de textos e artigos de diversos autores sobre as indústrias papeleiras e os grandes projetos de plantio de eucalipto na Metade Sul do Estado, organizada por Althen Teixeira Filho, doutor e professor titular do Instituto de Biologia da Universidade Federal de Pelotas.
O título tem essa grafia mesmo, fazendo trocadilho com os "capitais" das grandes papeleiras. A obra será lançada amanhã, sexta-feira, às 18 horas, na 36ª. Feira do Livro de Pelotas, na Livraria Mundial.
Segundo o organizador, é um livro que resulta de seminários, debates abertos feitos por professores de quatro universidades federais do Rio Grande do Sul (Pelotas, Santa Maria, Rio Grande e Porto Alegre), além de Unijuí, pesquisadores da Embrapa Clima Temperado e economistas.
“Várias vezes reunidos, discutimos um tema que quer ser controverso, mas não o é. Trata-se da proposta de inundar o Estado com oceânicas lavouras de eucalipto e das empresas papeleiras, melhor denominadas de pasteiras”, diz Althen, na apresentação do livro.
“O nosso Rio Grande do Sul está sendo desfigurado só para atender sociedades altamente consumidoras de papel”, afirma Althen, que completa: “Oferecemos reflexões baseadas em informações que são omitidas por governos, políticos e instituições”.
O livro será distribuído gratuitamente às escolas de primeiro e segundo graus, bibliotecas, universidades, centros de pesquisa e está disponível sem custos na internet (http://www.semapirs.com.br/ / http://www.sintrajufe.org.br/). O financiamento para impressão, segundo o organizador, veio de sindicatos de trabalhadores.
Por Ulisses A. Nenê, para a Ecoagência, www.ecoagencia.blogspot.com.

sábado, 8 de novembro de 2008

Bioma Pampa agredido pelas barragens dos arroios Jaguari e Taquarembó

Denúncia do Movimento Gaúcho de Defesa do Meio Ambiente
Fonte:
Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do RS

O governo federal e o estadual do Rio Grande do Sul vêm anunciando a construção de duas de cerca de uma dúzia de barragens na bacia do rio Santa Maria, no bioma Pampa: as do arroio Jaguari (municípios de Lavras do Sul e São Gabriel) e Taquarembó (municípios de Dom Pedrito e Lavras do Sul). Essas barragens, que inundarão áreas importantes quanto à biodiversidade e a presença de espécies endêmicas, servirão para disponibilização de água para irrigação do arroz, primordialmente. A cultura de arroz gera outro impacto, ao eliminar áreas de preservação permanente - APP, localizadas nas várzeas fluviais. Portanto, as barragens geram um duplo impacto: pelo alagamento de áreas com grande biodiversidade e pela ocupação com o arroz de APPs. Recentemente foram apresentados os Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) desses empreendimentos. Chamam a atenção a má qualidade, as omissões, e as falhas diversas que apresentam o que, por si só, seriam mais que suficientes para torná-los inaceitáveis. Alguns pontos mais expressivos:

Serão mais de 1.132 hectares de florestas de galeria que deverão ser suprimidas ou sucumbirão com estas duas obras. Uma fauna raríssima e ameaçada, e as florestas mais contínuas (Matas em Galeria) da região do Pampa desaparecerão. Na área prevista para o alagamento das barragens 1.579.106 árvores nativas deverão ser suprimidas. Esta quantidade corresponde ao total de árvores que ocorre nas ruas de Porto Alegre, cidade considerada mais arborizada do Brasil. A grande maioria de espécies que não existe em nenhum viveiro do Estado.

Os estudos de impacto não fazem referência as espécies da flora ameaçada de extinção pelo Decreto Estadual 42.099/2002. Corticeiras, figueiras, araucárias e outras espécies que sendo retiradas exigem reparações não foram contabilizadas, embora existam em grande número nas áreas a serem inundadas. Os levantamentos são insuficientes, com amostragens escassas (apenas 80 árvores), não tendo amostragens quantitativas de campo.

Nestas áreas existem espécies de fauna de mamíferos ameaçados como gato maracajá (Leopardus wiedii), veado catingueiro (Mazama gouazoupira), gato-do-mato (Oncifelis geofroy), entre outros.

Chama a atenção nesse processo de licenciamento ambiental dessas barragens o lamentável comportamento do governo do RS e dos dirigentes de seu órgão ambiental, a FEPAM. Eventos que deveriam constranger a sociedade gaúcha foram perpetrados na ânsia de aprovar, de qualquer maneira, essas obras, sem qualquer análise técnica, econômica, social e ambiental criteriosa.

As práticas censuráveis foram iniciadas em 20 de março de 2007 por um anúncio no Diário Oficial do RS, em sua página 16, disponibilizando os EIA/RIMAS das barragens na biblioteca da FEPAM para consulta. Foi constatada uma tentativa grosseira de apresentar relatórios carentes de conteúdo técnico como se fossem RIMAs. Uma nota manuscrita deixada em protesto na biblioteca da FEPAM foi suficiente para a retirada dos pretensos RIMAs e a afirmação do seu na época presidente de que eles nunca existiram.

Não melindrada pelo ocorrido, em agosto de 2007, a FEPAM emitiu “Licenças Prévias de EIA-RIMA” que autorizaram, sem haver necessidade para tal, a “continuidade do procedimento administrativo de licenciamento ambiental prévio” dos empreendimentos das barragens do arroio Jaguari e Taquarembó. Este tipo de licença não faz parte dos documentos que são requeridos pela legislação ambiental; dar continuidade ao “procedimento administrativo de licenciamento ambiental prévio” é uma obrigação e razão de ser da FEPAM para o qual não há necessidade de autorização. O que foi mais grave é a exigência de publicação no “Diário Oficial do Estado e em periódico diário de grande circulação regional na área do empreendimento”, o pedido de licenciamento, “informando que a FEPAM emitiu Licença Prévia para continuidade do licenciamento, através do instrumento EIA-RIMA”. Ou seja, o objetivo era tão somente iludir a terceiros (possivelmente o Governo Federal que financia os empreendimentos pelo PAC) levando ao entendimento equivocado que as Licenças Prévias haviam sido efetivamente emitidas. Isso motivou ao Ministério Público Estadual acionar a justiça que suspendeu, liminarmente, essas licenças.

Como conseqüência, foi homologado no final de 2007 um Termo de Ajuste de Conduta – TAC entre o Governo do RS e o MPE. O item 5 das resoluções é constrangedor: “a FEPAM se compromete a impedir o início de qualquer obra referente aos empreendimentos enquanto não finalizado todo o processo de licenciamento de instalação”. Um item dispõe que a FEPAM, “na eventual concessão das LPs ....”; ou seja: no TAC está claro que as LPs não foram emitidas.

Finalmente: em Junho de 2008 os EIA/RIMA foram apresentados e para as suas elaborações foi contratada a empresa de consultoria Beck de Souza Ltda. Cabe alertar que Estudos Prévios de Impacto Ambiental são legalmente normatizados no estado do Rio Grande do Sul pelo Código Estadual de Meio Ambiente, instituído pela Lei Estadual nº 11.520, de 03 de agosto de 2000. Nesta lei - visando a evitar que a empresa contratada para elaborar o Estudo de Impacto Ambiental de um empreendimento seja “contaminada” pela vontade de aprová-lo face à sua captura pelos interesses do empreendedor, como parece ter ocorrido no caso das barragens aludidas, de forma objetiva ou subjetiva - é disposto que a empresa contratada deve ser não dependente direta ou indiretamente do proponente do projeto. Ela também não poderá prestar serviços ao empreendedor, ... ou serviços relacionados ao mesmo empreendimento objeto do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) (art 76).

A consultora contratada tem um longo envolvimento com esses empreendimentos, o que deveria inabilitá-la para elaborar os seus EIA/RIMAs à luz da legislação. A saber:

1. Em 2001, a empresa Beck de Souza Engenharia Ltda apresentou um estudo à Secretaria de Obras Públicas e Saneamento – SOPS que foi posteriormente apresentado como um pretenso Rima da barragem do Jaguari, em março de 2007.

2. Em 22 de Julho de 2004 a consultora foi contratada pela SOPS para “Execução dos serviços de consultoria, compreendendo apoio gerencial e operacional, elaboração de estudos técnicos, programas ambientais, diagnósticos, prognósticos, planos, sistemas, programas de qualidade e projetos, no âmbito da SOPS”. Muitos desses estudos, amparados por este contrato “guarda-chuva”, dizem respeito a partes do projeto das barragens dos arroios Jaguari e do Taquarembó, o que pode ser facilmente verificado nos processos administrativos da SOPS. A rigor, a consultora se tornou um “escritório de projetos” para a SOPS, tratando de adaptações e atualizações nos projetos desses empreendimentos, originalmente propostos por outras empresas, entre outras tarefas. Essa atividade, iniciada em 2004 teve seqüência ao longo do tempo, por meio de aditivos diversos muitos dos quais visaram a adaptação dos projetos das barragens.

3. Finalmente, em 28 de junho de 2007, houve o quarto aditamento, que “visa aditamento de acréscimo de serviços com vistas ao atendimento ao constante dos Termos de Referências, integrantes deste processo, referentes aos Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental – EIA – RIMA dos Sistemas que compõem todos os empreedimentos das Barragens dos Arroios Jaguari e Taquarembó, na Bacia Hidrográfica do Rio Santa Maria, Metade Sul do Estado, conforme acréscimos descritos na Cláusula Segunda deste aditivo”.

Logo, a consultora mencionada, que foi contratada em 2004 para servir de escritório de “serviços de consultoria ... e projetos” pela SOPS, atuando nas diversas alterações e adaptações dos projetos das barragens do Jaguari e do Taquarembó, foi adiante contratada para elaborar o estudo de impacto ambiental de ambos os empreendimentos, - o que é ainda mais grave: pelo mesmo instrumento - em flagrante e inequívoca contradição ao que dispõe o Código Estadual de Meio Ambiente, em seu art. 76.

Pelas razões amplamente demonstradas e que podem ser comprovadas por publicações no Diário Oficial do Rio Grande do Sul, e que poderão ser ainda mais aprofundadas em consultas aos processos da SOPS relativos ao contrato com a consultora, fica caracterizado que ela, responsável pela elaboração do EIA/RIMA das barragens dos arroios Jaguari e Taquarembó:

1. dependia diretamente do proponente do projeto, em função de contrato guarda-chuva que vigia desde 2004, com objetivo de adaptar e alterar o projeto dos empreendimentos, entre outras funções;

2. prestou serviços ao empreendedor, simultânea e diretamente, ou por meio de membros da equipe técnica que elaborou os estudos, como projetista ou executora de serviços relacionados ao mesmo empreendimento objeto do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), tendo como vínculo o mesmo contrato que amparou a elaboração do EIA/RIMA;

3. e, em função desses fatos, não possui a independência necessária e legalmente requerida pelas normas legais para produzir um estudo de impacto ambiental dos empreendimentos em apreço.

CONCLUSÃO FINAL

Diante desses fatos, o bom senso, o espírito público e a obediência à legislação impõem:

1. Que a FEPAM inabilite os EIA/RIMAs dos empreendimentos das barragens do arroio Jaguari e do arroio Taquarembó como peças para análise dos impactos ambientais desses empreendimentos;

2. Que a FEPAM determine ao empreendedor, a SOPS, que promova a contratação de outra empresa real e comprovadamente independente, para realização de novos EIA/RIMAs;

3. Que a FEPAM, nos Termos de Referência que deverá elaborar para os novos EIA/RIMAs, assegure-se que sejam estes estudos sejam preparados com maior consistência e rigor técnico, dirimindo os problemas que foram brevemente apontados e outros facilmente constatáveis em uma análise mais apurada do material apresentado.

Finalmente, urge que a Fundação Estadual de Proteção Ambiental volte a ser um órgão que promova efetivamente a proteção ambiental do estado, como diz seu próprio nome, e possa de novo merecer a confiança do povo gaúcho nas questões ambientais.